Inspiração
“Onde até na força do verão havia tempestades de ventos
e frios de crudelíssimo inverno” Fr. Luís de Sousa
São Paulo! comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Trajes de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
(p. 83)
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Mário de Andrade por Tarsila do Amaral |
O Trovador
Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras de sarcasmo
Intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!
(p. 83)
Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangue de alguns milréis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
"- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... - Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
(p. 88-89)
Jorobabel
Um choro aberto sobre o universo desaba
A badalar... Um choro aberto sobre a Terra
Em bandos de ais... Guaiar profético se expande...
Anda fraco no mundo o agouro da miséria...
Job abúlico baba o fel que o devora... Hirta
A multidão que despareceu Abel...
Um choro... E a vida excessivamente infinita!...
Clamor! Ninguém se entende! Um Deus não vem!... Babel!...
Babel! Um choro aberto sobre a confusão
Das raças! Babel! Os sinos em arremessos
Bélicos! Badalar dos sinos! Multidão
Hirta! Jerusalém incendiada... Rebate
Babel! Jerusalém! Jorobabel! Babel!
Batem os bronzes bimbalhando! Pobre Job
Sem ouro, multidão devora e baba o fel!...
Um choro aberto de entes misérrimos...
(p. 143)
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Mário de Andrade, 1931 |
Cabo Machado
Cabo Machado é cor de jambo,
Pequenino que nem todo brasileiro que se preza,
Cabo Machado é moço bem bonito.
É como si a madrugada andasse na minha frente.
Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo
Adonde alumia o Sol de ouro dos dentes
Obturados com luxo oriental.
Cabo Machado marchando
É muito pouco marcial.
Cabo Machado é dançarino, sincopado,
Marcha vem-cá-mulata.
Cabo Machado traz a cabeça levantada
Olhar dengoso pros lados.
Segue todo rico de joias olhares quebrados
Que se enrabicharam pelo posto dele
E pela cor-de-jambo.
Cabo Machado é delicado, gentil.
Educação francesa mesureira.
Cabo Machado é doce que nem mel
E polido que nem manga-rosa.
Cabo Machado é bem o representante duma terra
Cuja Constituição proíbe as guerras de conquista
E recomenda cuidadosamente o arbitramento.
Só não bulam com ele!
Mas amor menos confiança!
Cabo Machado toma um jeito de rasteira...
Mas traz unhas bem tratadas
Mãos transparentes frias,
Não rejeita o bom-tom do pó-de-arroz.
Si vê bem que prefere o arbitramento,
E tudo acaba em dança!
Por isso cabo Machado anda maxixe.
Cabo Machado... bandeira nacional!
A serra do rola-moça (*)
A Serra do Rola-MoçaNão tinha esse nome não.Eles eram do outro lado,Vieram na vila casar.E atravessaram a serra,O noivo com a noiva deleCada qual no seu cavalo.Antes que chegasse a noiteSe lembraram de voltar.Disseram adeus pra todosE se puserem de novoPelos atalhos da serraCada qual no seu cavalo.Os dois estavam felizes,Na altura tudo era paz.Pelos caminhos estreitosEle na frente, ela atrás.E riam. Como eles riam!Riam até sem razão.A Serra do Rola-MoçaNão tinha esse nome não.As tribos rubras da tardeRapidamente fugiamE apressadas se escondiamLá embaixo nos socavões,Temendo a noite que vinha.Porém os dois continuavamCada qual no seu cavalo,E riam. Como eles riam!E os risos também casavamCom as risadas dos cascalhos,Que pulando levianinhosDa vereda se soltavam,Buscando o despenhadeiro.Ali, Fortuna inviolável!O casco pisara em falso.Dão noiva e cavalo um saltoPrecipitados no abismo.Nem o baque se escutou.Faz um silêncio de morte,Na altura tudo era paz ...Chicoteado o seu cavalo,No vão do despenhadeiroO noivo se despenhou.E a Serra do Rola-MoçaRola-Moça se chamou.* - Este poema na verdade é uma parte do longo “Noturno de Belo Horizonte”, publicado em Clã de Jabuti, 1924.(p; 164-186)
Eu Sou Trezentos...
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
Lundu do escritor difícil
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que para no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!
Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bagé, piché, chué, ôh "xavié",
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!
Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu cassange!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
(p.306-307)
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Mário de Andrade pintado por Lasar Segall |
Os gatos
Que beijos que eu dava...
Não tigre, vossa boca é mesmo que um gato
Imitando tigre.
Boca rajada, boca rasgada de listas,
De preto, de branco,
Boca hitlerista,
Vossa boca é mesmo que um gato.
Nas paredes da noite estão os gatos.
Têm garras, têm enormes perigos
De exércitos disfarçados,
Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta,
Irão estourar por aí de repente,
Já estão com mil rabos além de São Paulo,
Nem sei mais si são as fábricas que miam
Na tarde desesperada.
Penso que vai chover sobre os amores dos gatos.
Fugirão?... e só eu no deserto das ruas,
Oh incendiária dos meus aléns sonoros,
Irei buscando a vossa boca,
Vossa boca hitlerista,
Vossa boca mais nítida que o amor,
Ai, que beijos que eu dava...
Guardados na chuva...
Boiando nas enxurradas
Nosso corpo de amor...
Que beijos, que beijos que eu dou!
Vamos enrolados pelas enxurradas
Em que boiam corpos, em que boiam os mortos,
Em que vão putrefatos milhares de gatos...
Das casas cai mentira,
Nós vamos comas enxurradas,
Com a perfeita inocência dos fenômenos da terra,
Voluptuosamente mortos,
Os sem ciência mais nenhuma de que a vida
Está horrenda, querendo ser, erguendo os rabos
Por trás da noite, em companhia dos milhões de gatos verdes.
(p. 313-314)
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Mário de Andrade em Araraquara |
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
(p. 380)